quarta-feira, 20 de maio de 2009

O Primeiro Amor

Costumava brincar sozinha nos largos jardins da casa da minha avó. Eu era filha mais nova de uma família de quatro irmãos, e acho que os caçulas herdam sem querer as espertezas dos mais velhos.
Passava o dia a brincar com minha solidão. Os outros irmãos iam se divertir com as coisas que as meninas e meninos mais velhos fazem, e eu como não sabia o que eles faziam , brincava com os meus amigos tatu-bolinha, formigas, mariposas, minhocas, rosas e margaridas.
Nos dias de sol, gostava de levantar antes mesmo que ele se anunciasse no horizonte, o maior prazer era ir para o quintal da frente, sentar numa pequena escadaria e esperar o espetáculo de luzes laranja e amarela em contraste com o azul vibrante do céu. A lua ainda permanecia calada e ia sumindo devagar, para que sol brilhasse mais forte. As vezes, meu pai me acompanhava no espetáculo, ele e eu sentados na escadinha, ouvindo ao som do radinho de pilha e sentindo o aroma de café passado em coador de pano.
Passava meus dias assim e durante o ano frequentava a escola onde haviam crianças da minha idade. E isso era bom. Eu e minhas amigas trocávamos papéis de carta, uma disputa para quem conseguisse o mais raro, aquele que ninguém tinha. Eu possuía uma coleção invejável de papéis de carta do Chaplin. Ninguém tinha igual, aqueles eu nunca troquei e acreditem, até hoje os tenho guardados. Álbum do Amar é, todas colecionavam e trocavam figurinhas diariamente durante o recreio. A escola era o lugar das amizades, das trocas, das risadas. Depois voltava para casa e continuava com meus amigos mudos, onde eu inventava línguas e sons para eles.
E a vida foi assim até o início de meus doze anos. Completei em janeiro e como todos os aniversariantes de janeiro, a festa, fica sempre para fevereiro. Mês de férias escolares é assim: Todo mundo viaja e eu novamente fiquei, porque ainda não tinha idade para seguir os mais velhos, que faziam coisas que só os meninos e meninas mais velhos fazem.
Neste mês de janeiro, as férias não queriam acabar. Todos os dias corria para o portão para ver se meus irmãos chegavam. Nada. Lá ia eu a correr, saltar, cair e brincar com minha imaginação. E brincando e brincando, um dia notei uma movimentação diferente na casa dos vizinhos. Era uma grande mudança. Fiquei espiando e para minha surpresa, saiu do carro um menino que parecia ter a minha idade. Não podia acreditar! Finalmente alguém pra me fazer companhia! Não precisaria mais de meus amigos insetos. Meu coração não se conteve de emoção e quando percebi eu e o menino já estávamos brincando de corrida, pega-pega, esconde-esconde. Subíamos nos pés das jabuticabeiras, roubávamos mangas dos vizinhos, sentávamos para ver o pôr do sol e corríamos atrás do arco-íris.
Nos dias das tempestades de verão, jogávamos dama, ludo, dominó.
E eu era tão feliz com meu novo amigo.
Mas as férias acabaram, as aulas voltaram e eu não podia mais ver meu amigo. Ele estudava em um colégio de padres durante o dia todo, quando chegava em casa não saia para brincar na rua. As vezes, a noite, da janela do meu quarto, eu avistava uma luzinha acesa no quarto dele. Ficava olhando como se neste esforço de olhar, ele pudesse me ouvir e aparecesse na janela. O que será que ele está fazendo ainda acordado? Pensava...
Uma noite aconteceu uma coisa inesperada, ficamos sem energia elétrica e como de costume acendíamos velas por toda a casa. Quando isso acontecia, meus irmãos mais velhos, para não morrerem de tédio, acabavam por fazer coisas que meninos e meninas da minha idade faziam. Brincávamos de teatro de sombras, e fazíamos as mais diversas formas com as mãos e inventtando histórias com: elefantes, cães, caçadores, e pássaros. E isso era bom. Durante a brincadeira, de relance, olhei para além da janela e percebi que meu amigo estava lá nos espiando. Então sem que nenhum dos meus irmãos percebesse, me aproximei da janela e acenei para ele. Vi que ele também acenou e sorriu. Daquele dia em diante, esse era o nosso código. Todos os dias, as nove da noite, eu ficava parada na minha janela olhando para a janela dele e ele ficava parado na janela dele olhando para minha janela.
Todos os dias, como um ritual. Era estanho, mas era bom.
O ano passou e eu ansiosa por férias, que bom que ia poder encontrar meu amigo.
Mas para minha surpresa, meu amigo, desta vez foi passar férias na fazenda de uma tia. Logo me vi novamente com meus amigos mudos, minhas flores e minhas fantasias.
Sem nada para fazer, comecei a observar as borboletas que passavam, muitas pousavam nos meus ombros e me faziam companhia. Outras, passavam em soslaio. Quando me entediava corria atrás delas. Era incrível. Fui percebendo que a cada dia chegavam novas voadoras. Uma amarelinha, depois uma branquinha e depois verdes, rosas, vermelhas, pintadas e borradas de todas as cores. A minhas amigas que voavam pareciam querer minha amizade. Eram tantas que passeavam ao meu redor, caminhando comigo, que formavam uma espécie de redoma de borboletas e eu de tão fascinada com aquela festa de mariposas, deixei a minha boca abrir de perplexidade. E sem que percebesse, uma borboleta entrou na minha boca e no susto tranquei os lábios. Suas asas batiam com tanta velocidade que faziam cócegas, ia de um lado pra o outro, para baixo e pra cima, rodopiava. Senti a suavidade da suas asas batendo no céu da boca e saboreei as cores de suas asas. E isso era bom. Soltei os lábios e deixei que ela escapasse.
Naquele dia, imaginei fazer aquilo com borboletas menores, maiores. Queria provar todas as cores. Corri até a minha casa, deitei sobre a cama e adormeci.
Meus dias durante aquelas férias foram de brincar de caçar borboletas com a boca. Os dias de verão já estavam no fim quando meu amigo apareceu no portão. Ah quanta felicidade! Queria saber de todas as suas novidades e mal podia esperar para lhe contar a minha nova brincadeira. Disse a ele:
- Venha ver a minha nova brincadeira, é fascinante, olha só.
E mostrei a ele como fazia: pegava a borboleta pelas asas colocava dentro da boca e com a boca inteira vibrando por mais de um minuto soltava a bichinha.
- Ah quue nojo, ahhh, bleeeeef. Eu não vou fazer isto! Que coisa mais nojenta! Ele disse fazendo cara de asco.
- Ah, tenta vai? Uma vez só, é muito legal, você vai gostar, não é nojento! Disse insistindo.
- Não. Ahhh, bleeeeef
- Só uma vez? Uma vezinha só. Implorei
- Não. Negou e emburrou.
Ficamos sentados no muro, calados. Eu decepcionada com a negação da minha brincadeira tão incrível. E ele com cara de nojo e emburrado.
Passou na nossa frente uma borboleta azul com desenhos em amarelo e vermelho. Num gesto de coragem, bruscamente meti novamente a borboleta em minha boca. E para minha surpresa, meu amigo tocou na minha mão, e me olhando timidamente, disse:
- Me passa?
Com a boca aberta ficou a esperar a minha borboleta. Fui me aproximando devagar até que meus lábios encostassem nos lábios dele. Passei-lhe a borboleta.
Ele a prendeu por mais de um minuto. Sua boca vibrava e eu podia até mesmo decifrar os movimentos que a borboleta fazia lá dentro, o sabor das cores, das asas encostando nas paredes e nos dentes.
Foi quando ele a soltou e correu. Correu rapidamente até o portão e antes que fosse embora, virou , olhou para mim e gritou:
- Amanhã, passa-me outra?

Narrativa inspirada em um conto do escritor Xavier do Campo.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Regina Machado



Estou lendo o livro "Acordais", de Regina Machado e me divertindo bastante com esta leitura. O livro traz a receita certa para ser um contator de histórias. Ela detalha cada passo, contando também sua experiência ao longo dos anos que desenvolveu esta linda profissão. Inclusive, se vocês prestarem atenção nas agendas culturais de hoje, sempre há um espaço para os contadores. A Regina foi uma das responsáveis por isso.
Há algumas semanas fui assistir uma contação de história dela e apesar de atrasada, consegui ouvir três histórias.
Uma delas chama-se A aventura de Chu, que está no livro Acordais, e ela reconta. A forma, a expressão e a suavidade com que ela conta é fascinante, me transportou para o universo do conto e de forma semelhante que o personagem entra no quadro que vê, eu também me transportei para lá.
A história quando é contada e bem contada, jamais sai da nossa memória e esta história da Regina não saiu da minha cabeça, tanto que ela me inspirou fazer um desenho sobre ela. Assim eu também coloco em prática esta tradição oral tão bela... Quem sabe, meus filhos e netos também irão ouvir e transmitir para tantas outras pessoas estas lindas fantasias que deixa a vida com sabores mais adocicados.


A aventura de Chu

Era uma vez dois amigos que viajavam pelo mundo. Heng e Chu passaram por países desconhecidos, rios, vales e montanhas.

Um dia, quando atravessavam uma floresta, viram que logo ia desabar uma tempestade. Procuraram um abrigo e viram ao longe um velho templo em ruínas. Correram para lá e foram recebidos por um velho monge muito sorridente. O monge lhes disse:
_ Amigos, quero que vocês me acompanhem até a sala dos fundos do templo. Lá está representada uma obra de arte como não existe igual. Venham ver o bosque de pinheiros que está pintado na parede do fundo do templo.

Ele se virou e foi devagar, arrastando os chinelos. Os dois amigos o seguiram. Quando chegaram à última sala, ficaram maravilhados. De fato, era uma magnífica obra de arte. Começaram a andar desde o começo da pintura, observando as árvores de todos os tamanhos e tons de verde. Perceberam que além dos pinheiros havia outras figuras, montanhas ao fundo, um sol dourado iluminando o céu, jovens em grupo, em pares, conversando, colhendo flores.

Chu ia na frente e, quando chegou bem no meio da parede, parou. Ali estava uma jovem tão linda que o deixou boquiaberto. Era alta, elegante, os olhos negros pareciam duas jabuticabas, a boca era como um morango maduro; tinha um cesto no braço, colhia flores e seus cabelos eram longos e negros, penteados em duas grossas tranças até a cintura. Chu apaixonou-se imediatamente por ela e ficou ali parado, contemplando cada detalhe daquela jovem tão bela.

Chu não sabe quanto tempo ficou ali, até que de repente sentiu como se estivesse flutuando, seus pés não tocavam o chão. Olhou à sua volta e viu um sol dourado iluminando o céu, ouviu vozes e percebeu que eram das jovens que ele tinha visto pintadas na parede. Foi então que se deu conta de que estava dentro do quadro.

Quando se refazia do susto, viu a jovem de quem tinha gostado, um pouco mais adiante. Ela olhou para ele, sorriu, jogou as tranças para trás e saiu correndo. Ele a seguiu até que ela chegou a um jardim cheio de pequenas flores coloridas, que ficava em volta de uma casa toda branca. Ela atravessou o jardim e parou diante da porta. Quando Chu se aproximou, eles entraram e ficaram parados em pé, um diante do outro, bem no meio daquele aposento silencioso.

Eles se abraçaram, e Chu sentiu que amava aquela jovem como se fosse desde sempre. Então, eles foram para a cama e na manhã seguinte eram marido e mulher. A jovem se levantou e foi pentear seus longos cabelos, mas agora não fez as duas tranças, e sim um coque na nuca, como era costume das mulheres casadas.

nquanto conversavam, ouviram barulhos estranhos lá fora, passos pesados, som de correntes. A jovem ficou pálida, fez um sinal para Chu não dizer nenhuma palavra. Foram até uma fresta da porta e espiaram para fora.

Viram um ser descomunal, inteiramente vestido com uma armadura de ferro. Com olhos ameaçadores, ele carregava na mão um chicote, grilhões e uma corrente. Ele disse para as jovens do quadro que estavam à sua volta, apavoradas:
_ Afastem-se. Sei que há um ser humano entre nós, não adianta esconder. Agora vou vasculhar dentro da casa, tenho certeza de que ele está lá.

A jovem ficou mais pálida ainda e disse:
_ Chu, depressa, esconda-se embaixo da cama, não dá tempo de mais nada

Chu mal teve tempo de correr para debaixo da cama quando viu a porta se abrir. Duas botas de ferro entraram para dentro do quadro. Enquanto isso, Heng olhava o quadro, e deu por falta do amigo. Perguntou ao velho monge onde ele estava e o velho monge respondeu:
_ Não se preocupe, ele não foi muito longe, não.
Batendo com os dedos na parede, chamou com voz tranquila:
_ Volte, senhor Chu. Já é tempo de encontrar seu amigo outra vez!

Nesse momento, Chu foi saindo de dentro da parede.
_ Onde você esteve? _ perguntou Heng.
_ Eu não sei _ disse ele. _ Estava embaixo da cama, ouvi um barulho terrível, saí para ver o que era e sem saber como, cheguei de novo nessa sala.

Os dois amigos voltaram a olhar o quadro desde o começo para se despedirem dele. Chu ia na frente; quando chegou no meio da parede, aquela jovem estava lá. Alta, elegante, os olhos como duas jabuticabas, a boca lembrava um morango maduro e ela colhia flores. Mas seus cabelos não estavam mais penteados em tranças, agora eles formavam um coque na nuca, como era o costume das mulheres casadas, naquele lugar.

Os dois amigos desceram as escadarias do templo em silêncio. A chuva já tinha parado e eles se foram sem dizer palavra. A viagem continuava.”

In Regina Machado. Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias. São Paulo: DCL, 2004, p.39-41. História traduzida e recontada por Regina Machado a partir de: Gougaud, Henri. “L’ aventure de Chu”, in L’Arbre à soleils. Paris, Éditions Du Seuil, 1979. P. 109.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Eduardo Galeano

Para aqueles que se interessam por autores latino-americanos, deixo aqui a minha dica de leitura para esta semana.
O Livro dos Abraços, uma coleção de histórias curtas na visão de Galeano. Amor, política, valores... são alguns dos temas que deixam para nós uma leitura simples e ao mesmo tempo complexa. Lindo.

As Impressões digitais

Eu nasci e cresci debaixo das estrelas do Cruzeiro do Sul.
Aonde quer que eu vá, elas me perseguem. Debaixo do Cruzeiro do Sul, cruz de fulgores, vou vivendo as estações de meu destino.
Não tenho nenhum deus. Se tivesse, pediria a ele que não me deixe chegar à morte: ainda não. Falta muito o que andar. Existem luas para as quais ainda não lati e sóis nos quais ainda não me incendiei. Ainda não mergulhei em todos os mares deste mundo, que dizem que são sete, nem em todos os rios do Paraíso, que dizem que são quatro.
Em Montevidéu, existe um menino que explica:
- Eu não quero morrer nunca, porque quero brincar sempre.

terça-feira, 31 de março de 2009

A Moça Tecelã


Era uma vez...
Era uma vez alguém que tinha uma vida tranqüila, mas sentiu-se só, sonhou, construiu castelos e depois viu que não era nada daquilo que queria...
Familiar, não?. Na minha vida também aconteceu...
Mas a dificuldade está em ter coragem de mudar. A gente acaba se acostumando com o que é mais fácil e o que está pronto. Temos medo, e ao passar dos anos os sonhos vão sendo colocados em pequenas caixas numa gaveta qualquer de guardados. Deixamos para depois, para quando tivermos tempo ou quando nos aposentarmos. É muito comum isso.
Mudanças trazem a tona questões desafiadoras e nos colocam de frente como um espelho. E isso é dolorido e exige muito trabalho...
Estou dividindo com vocês uma questão pessoal... Sério... Estou no meio da mudança que começou no ano passado. Mudança de casa, de cidade, de trabalho, de estado civil e de estilo vida. Uma loucura mesmo! Digamos que estou no meio de uma revolução moral...
Repensei uma porção de coisas da minha vida, estava no entremeio de pensamentos quando percebi que não estava inteiramente fazendo o que gostava.
Tive que sistematizar, olhar para dentro de verdade e perceber que para mudar, basta começar e naturalmente as coisas vem até você... mas precisa querer de verdade, láááá do fundo do coração. E tempo para acontecer. O seu tempo e não de outrem.
Voltei com as minhas leituras, já bastante abandonadas.
Meus desenhos... revi os meus primeiros traços e analisei a evolução da minha vida descrita neles. Foi bonito. Daí em diante foi como entrar num quarto fechado há anos, que antes fora meu, mas havia esquecido a chave em algum lugar que não me lembrava.
Lembrei dos meus sonhos então empoeirados guardados na infância, nas aflições da adolescência e nas frustrações da vida adulta. E pela primeira vez na minha vida eu consegui me perguntar, sem as vozes das obrigações moral e capitalista, o que realmente eu gosto e quero.
Descobri e redescobri um monte de coisas, inclusive que gosto de escrever histórias e contá-las também. Acho que o blog é um bom começo!
Por este caminho que percorro atualmente, conheci uma escritora chamada Marina Colasanti. Ela escreve contos sobre fadas, unicórnios, princesas e sobre as aflições humanas de maneira fabulosa. Uma escritora que percebe sensivelmente os medos e fantasias inalteradas como passar dos tempos.
Foram dois contos que me chamaram a atenção e me inspiraram a escrever este texto: A Moça tecelã e Uma idéia toda azul.
O primeiro conta a história de uma moça que tecia a sua vida diariamente em um lindo tapete, até que se sentiu só e teceu um marido e depois as vontades dele, esquecendo-se dela. O segundo conto, fala sobre um rei que teve uma idéia toda azul, mas a guardou no "quarto do sono" durante anos, quando estava velho e aposentado foi tirá-la do quarto, ela ainda brilhava como nunca, mas o velho rei já não mais via graça naquela coisa azul...

terça-feira, 24 de março de 2009

Do Flâneur a atitude blasé


Propor um exercício do olhar na cidade, para quem não está acostumado com um mundo feito de imagens, em sua maioria banais, nos aglomerados de pessoas por todos lados, não será tarefa fácil. Difícil também, será a visão para as lojas e vitrines de algumas ruas do centro da metrópole. Aliás, será difícil encontrar na cidade um lugar de contemplação.
A veemência do Flâneur de Charles Baudelaire(1) que olha as transformações tecnológicas com o olhar caleidoscópio como descreveu Leyla Perrone-Moisés(2), já se perdeu há tempos dentro da metrópole, seu ritmo se tornou anacrônico na cidade de São Paulo, onde o pedestre perdeu sua vez para o automóvel, quando seus passos são cerceados pelos semáforos que ditam o tempo: para onde e quando devemos ir.
As constantes transformações que a cidade veio sofrendo, os residentes da cidade observam menos que os visitantes. Isso se deve à turbulência de mensagens que o consumo(3) impõe. É o tal do olhar e não ver, não perceber. A mente está em outro lugar. Ensimesmados, os usuários da cidade estão emergidos no “vazio de sentidos e de significação”(4).
Mudanças tecnológicas vão dissolvendo o saber e cabe a nós reconstruir. As relações sociais são alteradas, o indivíduo, o uno é liquidado, torna-se multidão e o o homem não se reconhece como produtor de suas próprias condições de vida.
Se todos os sentidos do Flânuer focam-se no visual da grande cidade, ao passar dos tempos este personagem de Baudelaire, depois de possuir tudo e de todos os ângulos, perde seu lugar para um tipo de atitude chamada blasé, dando uma nova característica ao sujeito da metrópole, como aborda que G. Simmel(5).
Essa nova característica do sujeito abordado por G. Simmel contrasta imediatamente com o habitante de uma pequena cidade. Ao contrário da vida numa cidadezinha, onde a vivência é mais tranqüila e há possibilidade de viver mais profundamente os sentidos emocionais, em uma metrópole, com a constante inserção dos inventos tecnológicos unindo-se aos mecanismos dos meios de comunicação de massa, vão interferir transformando os sentimentos do habitante da cidade, banalizando suas emoções, fazendo-o agir de formas mais racionais, deixando na superfície os sentimentos.
A atitude blasé é o resultado de uma excessiva estimulação nervosa devido as mudanças rápidas e constantes de compreensão no ambiente citadino. Juntamente com a intensificação da intelectualidade metropolitana e ao prazer que agita os estímulos de comportamento, em certo momento, param de reagir completamente. Ou seja, esta falta de reação é propriamente oposta ao personagem de B., a atitude blasé não permite mais o sujeito surpreender-se com o novo. Portanto, falta o equilíbrio nas reações com comportamento apropriado.
Mas este estado blasé tem o acréscimo de uma fonte que flui da economia do dinheiro e pela violência. Consiste no enfraquecimento do senso crítico, tornando fraca a compreensão do entorno, deixando-o sem substância.
Entretanto é preciso quebrar este estado lamentável e tentar utilizar linguagens que possibilitem a comunicação entre o homem e o seu meio. Assimilar esses constantes eventos que mudam as coisas e que transformam o ambiente citadino e os sentimentos do ser humano, tentar transformar em ações harmônicas, despertar identificação pelo espaço por ele habitado ou utilizado.

Socorro!
Não estou sentindo nada
Nem medo, nem calor, nem fogo
Não vai dar mais pra chorar
Nem pra rir...

Socorro!
Alguma alma mesmo que penada
Me empreste suas penas
Já não sinto amor, nem dor
Já não sinto nada...

Socorro!
Alguém me dê um coração
Que esse já não bate nem apanha
Por favor!
Uma emoção pequena, qualquer coisa!
Qualquer coisa que se sinta...
Tem tantos sentimentos
Deve ter algum que sirva
Qualquer coisa que se sinta
Tem tantos sentimentos
Deve ter algum que sirva...

Socorro!
Alguma rua que me dê sentido
Em qualquer cruzamento
Acostamento, encruzilhada
Socorro! Eu já não sinto nada...

Socorro!
Não estou sentindo nada [nada]
Nem medo, nem calor, nem fogo
Nem vontade de chorar
Nem de rir...

Socorro!
Alguma alma mesmo que penada
Me empreste suas penas
Eu Já não sinto amor, nem dor
Já não sinto nada...


Arnaldo Antunes


(1) Bauddelaire, Charles. Revê parisien. In:_____. Les fleurs du mal. Paris: Calman Levy, 1952
(2) Novaes, Adauto. O olhar._ Pensar é estar doente dos olhos: Leyla Perrone-Moisés, p. 327.
(3) O texto refere-se aqui ao consumo no sentido esclarecido por Karl Marx: “O consumo reproduz a necessidade” o objeto precisa existir para que haja consumo, para que o objeto exista deve haver a produção. “Sem produção não há consumo, mas sem consumo não há produção” ou ainda “...a produção gera no consumidor as necessidades dos produtos, que, de início, foram postos por ela como objeto. Produz, pois, o objeto de consumo, o impulso do consumo. De igual modo, o consumo engendra a disposição do produtor, solicitando-lhe a finalidade da produção sob forma de uma necessidade determinante
(4) Carlos, ana Fani Alessandri. Notas sobre a paisagem urbana paulista pg. 28. Revista da Biblioteca Mário de Andrade. São Paulo, v.54, jan./dez.1996
(5) Simmel, Georg. O fenômeno Urbano, organizado pr Guilherme Velho, Zahar Editores, 1967

Cidade como espaço do cidadão



O exercício da cidadania deve ser diário, assimilar as transformações do meio ambiente é adquirir conhecimento. Não é somente na cidade que temos a prática cultural, temos ela em todos lugares, cada qual com suas peculiaridades.
Milhares de imigrantes foram se assentando nas cidades grandes e trouxeram com eles variedades culturais. Em São Paulo isso não se deu diferentemente. Gente de todos os lugares do Brasil e do mundo se assentaram por aqui e cada um deles transportaram suas heranças culturais. Este passado teve que ser deixado de lado para ir de encontro a uma nova realidade. No caso das classes menos privilegiadas, dos pobres, este passado foi inutilizado, no lugar dele, a vida cotidiana do trabalho na luta pela sobrevivência, a favor de um futuro próspero, veio se tornando mais importante do que suas recordações.
Aproximar esse novo usuário da vida citadina, cultivar nele a importância de sua presença nos espaços da cidade, pode iniciar o despertar da consciência pelo lugar, que segundo Milton Santos tem conotação positiva, pois a vivência nova produz uma nova história para o indivíduo. Porém, deve-se lembrar que o homem ao defrontar-se com um espaço que ele não ajudou a criar, cuja a história por ele é ignorada, há grandes possibilidades de vir a ser um território de profunda alienação.
A participação da sociedade na transformação do lugar estabelece relações de passado, presente e futuro. O papel da memória do lugar pelo cidadão, acrescenta-lhes na vida sentido de existência. Ao contrário de sentir-se perdido, há um fio de esperança em resgatar das experiências passadas, referência para o futuro, pois a cidade é o próprio presente. Ela é o momento, é a transformação.
O uso do espaço da cidade como prática cultural faz ascender seus valores e mesmo que a duração física do lugar seja vencida pelo tempo, fica na memória a presença social e as transformações morais que se estabeleceu em cada época.

“O entorno vivido é o lugar de uma troca, matriz de um processo intelectual” (Milton Santos)

Dedicado a T.


Estou em dúvida ainda sobre o que escrever no primeiro texto do meu blog...
Ele nasceu de repente, no susto!
Apesar da minha cabeça estar borbulhando, deu aquele pânico... uau. O que escrever?
Então vou começar pelo que me impulsionou a publicar a minha visão das coisas sobre o mundo. Mas já peço desculpas se houver erros de ortografia.
Há algum tempo estou ensaiando para isto, acho que desde os tempo da faculdade e isso já faz pelo menos oito anos!
Quando concluí o curso de Desenho Industrial, estava cheia de ideais. Fiz uma pesquisa enorme sobre o velho centro da cidade São Paulo. Fiquei meses observando ruas, edifícios, casas, pessoas, clima... enfim, tudo que faz parte do trajeto de quem passa pelo centro velho e também o novo.
Redescobri com isso, uma nova São Paulo, repleta de utilidades, de belezas e de HISTÓRIA. Isto me rendeu a melhor pesquisa na faculdade, o que me deixou muito feliz.
Passado o tempo, acabei não optando pela área acadêmica. Optei trabalhar com motion graphics e animação, que também é um trabalho muito bacana. Estou nisso desde então.
A partir de 2006 percebi que além do vídeo precisava de mais alguma coisa. Algo que contribuísse com mundo de forma mais presente, e iniciei um trabalho como arte educador, coordenando oficinas de animação para vídeo.
Mas como tenho a "síndrome do passarinho" (segundo um astrólogo), não consigo ficar fazendo a mesma coisa durante muito tempo... Então, lá vou eu, pesquisar novamente...
Agora, estou também na Internet, velha para alguns, mas muito, muito nova para mim.
Mas o impulso maior mesmo, vamos dizer o estopim para escrever, foi um fato. Um fato corriqueiro. Um comentário de uma pessoa que provocou em mim uma avalanche! Foi assim:
Em janeiro, calorão danado, encontrei casualmente um amigo na Real (aquela padaria ao lado da MTv), ele estava acompanhado por um amigo que chamo aqui de T., para não ter problemas, preservarei a identidade da vítima. Estávamos conversando e eis que T. falou algo assim meio insatisfeito:
- Ah, moro aqui perto e estou sempre de carro. Queria poder andar mais a pé ...
E eu, amante da cidade, logo enchi o peito e disse empolgada:
- Por que você não faz um passeio de trem? Tem a Ponte Orca, um serviço do Metrô que leva e traz de van da estação Vila Madalena até a estação Usp!!! Um passeio legal, o trem é limpo e tem até música!!!
Ele mal olhou para mim e disse desdenhado:
- Afeeeee, passeio masoquista. Tô fora.
Aquele comentário me calou. Foi um balde de gelo. Não consegui prosseguir na conversa. Fiquei quieta ali sentada ouvindo o papo deles que não era mais este o assunto.
Fiquei olhando para T. e imaginando como é a vida dele. Por que pensava que pegar um trem, um metrô, um ônibus ou uma van seria sofrimento. Me perguntei se milhões de paulistanos são sofredores. E se eu sofro, já que utilizo o transporte público sempre?
Durante aquela semana, aquele mês, aquelas palavras não saíram da minha cabeça. Era estranho. Por que a opinião de uma pessoa que mal conheço me afetou tanto? E nem era diretamente sobre mim!
Resolvi. Vou utilizar todos os transportes públicos e vou novamente desbravar a cidade para ver se é sofrível. Não. Vou sentir a cidade novamente pulsar para poder amá-la mais. Pois não há o que provar o que já sei. Fiquei meses pesquisando quando estava na faculdade e sei que muitas coisas mudaram, algumas para melhor e outras para pior. Mas isso é o coração da cidade, esta movimentação. Claro, isto é uma opinião minha, o meu olhar, e não tenho a pretensão de "converter" ninguém, nem mesmo T.
Mas aquilo me serviu como um chacoalhão, porque depois daquele dia eu A C O R D E I. Revisitei todos os espaços culturais utilizando, claro, o transporte público. O primeiro lugar foi a Galeria Olido, (Metrô Anhangabaú) linda. Em frente, Largo do Paissandú, nas imediações encontramos: Sesc 24 de maio, Galeria do Rock (a maior concentração de lojas e afins no mundo sobre um estilo musical, o Rock), Viaduto do Chá e o Grande Teatro Municipal. Um pouco mais adiante, (Metrô República) os edifícios Itália, Copan, Biblioteca Mário de Andrade e a Praça da República que tem aos finais de semana a tradicional feira das artes.
Novamente de metrô, ou a pé que é mais legal, pode ser feito o trajeto que atravessa pelo Vale do Anhagabaú até o Centro Velho. Logo se vê o antigo edifício Martinelli e a antiga Torre do Banespa (visão 360 graus da cidade e de graça!). Logo depois temos Centro Cultural Banco do Brasil, Mosteiro de São Bento, Pátio do Colégio, Casa da Marquesa, Conjunto Cultural da Caixa Econômica e finalmente a Praça da Sé. Nesta pequena delimitação geográfica, praticamente 4 estações de metrô, um dia só não é suficiente.
Quantas coisas eu vi, quantas pessoas interessantes eu conversei e o que aprendi não há como calcular. Andei de trem até Usp, perambulei pela cidade universitária relembrando minha adolescência, aproveitei, e de trem, cheguei ao parque Vila Lobos. Fui na Cinemateca Brasileira (Metro Vila Mariana), caminhei apaixonada pela Avenida Paulista onde o cardápio pode ser: andar no parque Trianon, visitar o Masp, ir nos cinemas, livrarias, cafeterias, bares, restaurantes, Itaú Cultural, Sesc Paulista, Casa das Rosas e um pouquinho mais para frente o delicioso Centro Cultural São Paulo.
Depois deste banquete de possibilidades e me sentir mais integrante do que nunca desse lugar, o comentário de T., foi a melhor coisa que ouvi.
Agora senhores, que já sabem a história, vou publicar alguns textos que considero interessantes do meu TGI (Trabalho de Graduação Interdisciplinar). Mas antes, termino esta postagem, como uma citação de Ítalo Calvino, do seu livro Cidades Invisíveis:
(...) “Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras”

*Para mais informações sobre São Paulo, visite os sites: www.sampa.art.br,
sampacentro.terra.com.br, www.sampaonline.com.br