quarta-feira, 20 de maio de 2009

O Primeiro Amor

Costumava brincar sozinha nos largos jardins da casa da minha avó. Eu era filha mais nova de uma família de quatro irmãos, e acho que os caçulas herdam sem querer as espertezas dos mais velhos.
Passava o dia a brincar com minha solidão. Os outros irmãos iam se divertir com as coisas que as meninas e meninos mais velhos fazem, e eu como não sabia o que eles faziam , brincava com os meus amigos tatu-bolinha, formigas, mariposas, minhocas, rosas e margaridas.
Nos dias de sol, gostava de levantar antes mesmo que ele se anunciasse no horizonte, o maior prazer era ir para o quintal da frente, sentar numa pequena escadaria e esperar o espetáculo de luzes laranja e amarela em contraste com o azul vibrante do céu. A lua ainda permanecia calada e ia sumindo devagar, para que sol brilhasse mais forte. As vezes, meu pai me acompanhava no espetáculo, ele e eu sentados na escadinha, ouvindo ao som do radinho de pilha e sentindo o aroma de café passado em coador de pano.
Passava meus dias assim e durante o ano frequentava a escola onde haviam crianças da minha idade. E isso era bom. Eu e minhas amigas trocávamos papéis de carta, uma disputa para quem conseguisse o mais raro, aquele que ninguém tinha. Eu possuía uma coleção invejável de papéis de carta do Chaplin. Ninguém tinha igual, aqueles eu nunca troquei e acreditem, até hoje os tenho guardados. Álbum do Amar é, todas colecionavam e trocavam figurinhas diariamente durante o recreio. A escola era o lugar das amizades, das trocas, das risadas. Depois voltava para casa e continuava com meus amigos mudos, onde eu inventava línguas e sons para eles.
E a vida foi assim até o início de meus doze anos. Completei em janeiro e como todos os aniversariantes de janeiro, a festa, fica sempre para fevereiro. Mês de férias escolares é assim: Todo mundo viaja e eu novamente fiquei, porque ainda não tinha idade para seguir os mais velhos, que faziam coisas que só os meninos e meninas mais velhos fazem.
Neste mês de janeiro, as férias não queriam acabar. Todos os dias corria para o portão para ver se meus irmãos chegavam. Nada. Lá ia eu a correr, saltar, cair e brincar com minha imaginação. E brincando e brincando, um dia notei uma movimentação diferente na casa dos vizinhos. Era uma grande mudança. Fiquei espiando e para minha surpresa, saiu do carro um menino que parecia ter a minha idade. Não podia acreditar! Finalmente alguém pra me fazer companhia! Não precisaria mais de meus amigos insetos. Meu coração não se conteve de emoção e quando percebi eu e o menino já estávamos brincando de corrida, pega-pega, esconde-esconde. Subíamos nos pés das jabuticabeiras, roubávamos mangas dos vizinhos, sentávamos para ver o pôr do sol e corríamos atrás do arco-íris.
Nos dias das tempestades de verão, jogávamos dama, ludo, dominó.
E eu era tão feliz com meu novo amigo.
Mas as férias acabaram, as aulas voltaram e eu não podia mais ver meu amigo. Ele estudava em um colégio de padres durante o dia todo, quando chegava em casa não saia para brincar na rua. As vezes, a noite, da janela do meu quarto, eu avistava uma luzinha acesa no quarto dele. Ficava olhando como se neste esforço de olhar, ele pudesse me ouvir e aparecesse na janela. O que será que ele está fazendo ainda acordado? Pensava...
Uma noite aconteceu uma coisa inesperada, ficamos sem energia elétrica e como de costume acendíamos velas por toda a casa. Quando isso acontecia, meus irmãos mais velhos, para não morrerem de tédio, acabavam por fazer coisas que meninos e meninas da minha idade faziam. Brincávamos de teatro de sombras, e fazíamos as mais diversas formas com as mãos e inventtando histórias com: elefantes, cães, caçadores, e pássaros. E isso era bom. Durante a brincadeira, de relance, olhei para além da janela e percebi que meu amigo estava lá nos espiando. Então sem que nenhum dos meus irmãos percebesse, me aproximei da janela e acenei para ele. Vi que ele também acenou e sorriu. Daquele dia em diante, esse era o nosso código. Todos os dias, as nove da noite, eu ficava parada na minha janela olhando para a janela dele e ele ficava parado na janela dele olhando para minha janela.
Todos os dias, como um ritual. Era estanho, mas era bom.
O ano passou e eu ansiosa por férias, que bom que ia poder encontrar meu amigo.
Mas para minha surpresa, meu amigo, desta vez foi passar férias na fazenda de uma tia. Logo me vi novamente com meus amigos mudos, minhas flores e minhas fantasias.
Sem nada para fazer, comecei a observar as borboletas que passavam, muitas pousavam nos meus ombros e me faziam companhia. Outras, passavam em soslaio. Quando me entediava corria atrás delas. Era incrível. Fui percebendo que a cada dia chegavam novas voadoras. Uma amarelinha, depois uma branquinha e depois verdes, rosas, vermelhas, pintadas e borradas de todas as cores. A minhas amigas que voavam pareciam querer minha amizade. Eram tantas que passeavam ao meu redor, caminhando comigo, que formavam uma espécie de redoma de borboletas e eu de tão fascinada com aquela festa de mariposas, deixei a minha boca abrir de perplexidade. E sem que percebesse, uma borboleta entrou na minha boca e no susto tranquei os lábios. Suas asas batiam com tanta velocidade que faziam cócegas, ia de um lado pra o outro, para baixo e pra cima, rodopiava. Senti a suavidade da suas asas batendo no céu da boca e saboreei as cores de suas asas. E isso era bom. Soltei os lábios e deixei que ela escapasse.
Naquele dia, imaginei fazer aquilo com borboletas menores, maiores. Queria provar todas as cores. Corri até a minha casa, deitei sobre a cama e adormeci.
Meus dias durante aquelas férias foram de brincar de caçar borboletas com a boca. Os dias de verão já estavam no fim quando meu amigo apareceu no portão. Ah quanta felicidade! Queria saber de todas as suas novidades e mal podia esperar para lhe contar a minha nova brincadeira. Disse a ele:
- Venha ver a minha nova brincadeira, é fascinante, olha só.
E mostrei a ele como fazia: pegava a borboleta pelas asas colocava dentro da boca e com a boca inteira vibrando por mais de um minuto soltava a bichinha.
- Ah quue nojo, ahhh, bleeeeef. Eu não vou fazer isto! Que coisa mais nojenta! Ele disse fazendo cara de asco.
- Ah, tenta vai? Uma vez só, é muito legal, você vai gostar, não é nojento! Disse insistindo.
- Não. Ahhh, bleeeeef
- Só uma vez? Uma vezinha só. Implorei
- Não. Negou e emburrou.
Ficamos sentados no muro, calados. Eu decepcionada com a negação da minha brincadeira tão incrível. E ele com cara de nojo e emburrado.
Passou na nossa frente uma borboleta azul com desenhos em amarelo e vermelho. Num gesto de coragem, bruscamente meti novamente a borboleta em minha boca. E para minha surpresa, meu amigo tocou na minha mão, e me olhando timidamente, disse:
- Me passa?
Com a boca aberta ficou a esperar a minha borboleta. Fui me aproximando devagar até que meus lábios encostassem nos lábios dele. Passei-lhe a borboleta.
Ele a prendeu por mais de um minuto. Sua boca vibrava e eu podia até mesmo decifrar os movimentos que a borboleta fazia lá dentro, o sabor das cores, das asas encostando nas paredes e nos dentes.
Foi quando ele a soltou e correu. Correu rapidamente até o portão e antes que fosse embora, virou , olhou para mim e gritou:
- Amanhã, passa-me outra?

Narrativa inspirada em um conto do escritor Xavier do Campo.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Regina Machado



Estou lendo o livro "Acordais", de Regina Machado e me divertindo bastante com esta leitura. O livro traz a receita certa para ser um contator de histórias. Ela detalha cada passo, contando também sua experiência ao longo dos anos que desenvolveu esta linda profissão. Inclusive, se vocês prestarem atenção nas agendas culturais de hoje, sempre há um espaço para os contadores. A Regina foi uma das responsáveis por isso.
Há algumas semanas fui assistir uma contação de história dela e apesar de atrasada, consegui ouvir três histórias.
Uma delas chama-se A aventura de Chu, que está no livro Acordais, e ela reconta. A forma, a expressão e a suavidade com que ela conta é fascinante, me transportou para o universo do conto e de forma semelhante que o personagem entra no quadro que vê, eu também me transportei para lá.
A história quando é contada e bem contada, jamais sai da nossa memória e esta história da Regina não saiu da minha cabeça, tanto que ela me inspirou fazer um desenho sobre ela. Assim eu também coloco em prática esta tradição oral tão bela... Quem sabe, meus filhos e netos também irão ouvir e transmitir para tantas outras pessoas estas lindas fantasias que deixa a vida com sabores mais adocicados.


A aventura de Chu

Era uma vez dois amigos que viajavam pelo mundo. Heng e Chu passaram por países desconhecidos, rios, vales e montanhas.

Um dia, quando atravessavam uma floresta, viram que logo ia desabar uma tempestade. Procuraram um abrigo e viram ao longe um velho templo em ruínas. Correram para lá e foram recebidos por um velho monge muito sorridente. O monge lhes disse:
_ Amigos, quero que vocês me acompanhem até a sala dos fundos do templo. Lá está representada uma obra de arte como não existe igual. Venham ver o bosque de pinheiros que está pintado na parede do fundo do templo.

Ele se virou e foi devagar, arrastando os chinelos. Os dois amigos o seguiram. Quando chegaram à última sala, ficaram maravilhados. De fato, era uma magnífica obra de arte. Começaram a andar desde o começo da pintura, observando as árvores de todos os tamanhos e tons de verde. Perceberam que além dos pinheiros havia outras figuras, montanhas ao fundo, um sol dourado iluminando o céu, jovens em grupo, em pares, conversando, colhendo flores.

Chu ia na frente e, quando chegou bem no meio da parede, parou. Ali estava uma jovem tão linda que o deixou boquiaberto. Era alta, elegante, os olhos negros pareciam duas jabuticabas, a boca era como um morango maduro; tinha um cesto no braço, colhia flores e seus cabelos eram longos e negros, penteados em duas grossas tranças até a cintura. Chu apaixonou-se imediatamente por ela e ficou ali parado, contemplando cada detalhe daquela jovem tão bela.

Chu não sabe quanto tempo ficou ali, até que de repente sentiu como se estivesse flutuando, seus pés não tocavam o chão. Olhou à sua volta e viu um sol dourado iluminando o céu, ouviu vozes e percebeu que eram das jovens que ele tinha visto pintadas na parede. Foi então que se deu conta de que estava dentro do quadro.

Quando se refazia do susto, viu a jovem de quem tinha gostado, um pouco mais adiante. Ela olhou para ele, sorriu, jogou as tranças para trás e saiu correndo. Ele a seguiu até que ela chegou a um jardim cheio de pequenas flores coloridas, que ficava em volta de uma casa toda branca. Ela atravessou o jardim e parou diante da porta. Quando Chu se aproximou, eles entraram e ficaram parados em pé, um diante do outro, bem no meio daquele aposento silencioso.

Eles se abraçaram, e Chu sentiu que amava aquela jovem como se fosse desde sempre. Então, eles foram para a cama e na manhã seguinte eram marido e mulher. A jovem se levantou e foi pentear seus longos cabelos, mas agora não fez as duas tranças, e sim um coque na nuca, como era costume das mulheres casadas.

nquanto conversavam, ouviram barulhos estranhos lá fora, passos pesados, som de correntes. A jovem ficou pálida, fez um sinal para Chu não dizer nenhuma palavra. Foram até uma fresta da porta e espiaram para fora.

Viram um ser descomunal, inteiramente vestido com uma armadura de ferro. Com olhos ameaçadores, ele carregava na mão um chicote, grilhões e uma corrente. Ele disse para as jovens do quadro que estavam à sua volta, apavoradas:
_ Afastem-se. Sei que há um ser humano entre nós, não adianta esconder. Agora vou vasculhar dentro da casa, tenho certeza de que ele está lá.

A jovem ficou mais pálida ainda e disse:
_ Chu, depressa, esconda-se embaixo da cama, não dá tempo de mais nada

Chu mal teve tempo de correr para debaixo da cama quando viu a porta se abrir. Duas botas de ferro entraram para dentro do quadro. Enquanto isso, Heng olhava o quadro, e deu por falta do amigo. Perguntou ao velho monge onde ele estava e o velho monge respondeu:
_ Não se preocupe, ele não foi muito longe, não.
Batendo com os dedos na parede, chamou com voz tranquila:
_ Volte, senhor Chu. Já é tempo de encontrar seu amigo outra vez!

Nesse momento, Chu foi saindo de dentro da parede.
_ Onde você esteve? _ perguntou Heng.
_ Eu não sei _ disse ele. _ Estava embaixo da cama, ouvi um barulho terrível, saí para ver o que era e sem saber como, cheguei de novo nessa sala.

Os dois amigos voltaram a olhar o quadro desde o começo para se despedirem dele. Chu ia na frente; quando chegou no meio da parede, aquela jovem estava lá. Alta, elegante, os olhos como duas jabuticabas, a boca lembrava um morango maduro e ela colhia flores. Mas seus cabelos não estavam mais penteados em tranças, agora eles formavam um coque na nuca, como era o costume das mulheres casadas, naquele lugar.

Os dois amigos desceram as escadarias do templo em silêncio. A chuva já tinha parado e eles se foram sem dizer palavra. A viagem continuava.”

In Regina Machado. Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias. São Paulo: DCL, 2004, p.39-41. História traduzida e recontada por Regina Machado a partir de: Gougaud, Henri. “L’ aventure de Chu”, in L’Arbre à soleils. Paris, Éditions Du Seuil, 1979. P. 109.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Eduardo Galeano

Para aqueles que se interessam por autores latino-americanos, deixo aqui a minha dica de leitura para esta semana.
O Livro dos Abraços, uma coleção de histórias curtas na visão de Galeano. Amor, política, valores... são alguns dos temas que deixam para nós uma leitura simples e ao mesmo tempo complexa. Lindo.

As Impressões digitais

Eu nasci e cresci debaixo das estrelas do Cruzeiro do Sul.
Aonde quer que eu vá, elas me perseguem. Debaixo do Cruzeiro do Sul, cruz de fulgores, vou vivendo as estações de meu destino.
Não tenho nenhum deus. Se tivesse, pediria a ele que não me deixe chegar à morte: ainda não. Falta muito o que andar. Existem luas para as quais ainda não lati e sóis nos quais ainda não me incendiei. Ainda não mergulhei em todos os mares deste mundo, que dizem que são sete, nem em todos os rios do Paraíso, que dizem que são quatro.
Em Montevidéu, existe um menino que explica:
- Eu não quero morrer nunca, porque quero brincar sempre.